MEMÓRIAS COM FÔLEGO DE SANFONA

A voz é macia e carrega paixão. Algumas palavras são soletradas devagar, proferidas com intimidade, pois o narrador quer debulhar os "causos" da vida. Assunto não falta, afinal, o filho de "mestre Chicão" e de "dona Mariinha" partiu de Garanhuns (PE) muito jovem. Queria tocar sanfona e driblar as dificuldades com a música. Dominguinhos (1941-2013) conseguiu. Fácil, não foi.
Neste 12 de fevereiro, Dominguinhos completaria 74 anos de vida. O momento é oportuno para o lançamento do DVD ''Dominguinhos'', documentário que reúne encontros musicais e preciosas imagens de arquivo do artista.
Narrado pela voz suave e confessional do próprio sanfoneiro, a obra detalha a trajetória do nordestino no desbravar de um Brasil caboclo, quase inocente. Este resgate é auxiliado pela cuidadosa e bem montada seleção de imagens.
Diretor do filme, ao lado de Mariana Aydar e Eduardo Nazarian, Joaquim Castro explica que a missão era resgatar a memória afetiva, os sons da infância que influenciaram diretamente a musicalidade do poeta. Joaquim declara paixão pelos forrós, advindo das andanças - aos 15 anos de idade - nas festas. É nesse universo de zabumbas, triângulos e sanfonas, onde surge a proximidade com a obra de Seu Domingos. "Pensava em colocar tudo aquilo em filme", explica o cineasta. A chance chegaria anos depois, já na cidade do Rio de Janeiro. Tudo iniciou com um telefonema da amiga Mariana Aydar: "Dominguinhos está ensaiando para se apresentar em um prêmio de música, vamos lá filmar?". O sim foi imediato.
Obra digna
Ali iniciavam as filmagens do documentário. Era a partida de uma jornada escrita em mais de seis anos. A trajetória do artista é esmiuçada por uma bem estruturada reunião de imagens de arquivo e concertos ao lado de nomes como Luiz Gonzaga, Gal Costa, Gilberto Gil, Elba Ramalho e a parceira de composições, Anastácia. "É um filme construído através do cinema brasileiro. Uma espécie de antropofagia e ressignificação das imagens. A opção foi distanciar as filmagens do tipo de documentário 'quadrado', quase jornalístico", explica Joaquim.
Ao se ter em mãos a declaração de Joaquim (que também montou a obra) fica fácil entender o uso das cores idílicas do sertão emolduradas com o tilintar do som capturado no ambiente.
É o vento, o chocalho da rês, o sol agreste a vigiar tudo lá de cima. No longa, a sanfona é ampliada de sua função e chega-se denunciada como uma espécie de pulmão. O fole tem que respirar para que notas precisas possam se aproximar de algo semelhante à alma. O espectador é levado pela mão a uma jornada de memórias, cheiros e tons.
Para o diretor, a liberdade artística auxiliou na costura de perguntas como quem seria esse brasileiro chamado Dominguinhos. "Nosso filme transita entre o popular e o cinema de invenção. Da intelectualidade ao popular. A luta sempre foi fazer uma obra digna do mestre", finaliza.
Relembrando
Catherine Furtado é professora do curso de música da Universidade Federal do Ceará (UFC) e relembra a oportunidade de ter visto o documentário ainda no cinema. Quando conversa sobre o longa, o primeiro resgate é sobre a representação da persona do sanfoneiro.
"O que mais me recordo é a apresentação da personalidade de Dominguinhos. A figura humilde, acessível e aberta para outras possibilidades musicais". Puxando um pouco mais da memória, a docente argumenta como se definiria o leque de opções musicais do artista: "Além do repertório regional, ele é adepto de um musicalidade diversa. Pode tocar jazz, pode tocar outros ritmos. Ele canta todo o nordeste e tem a capacidade de carregar toda essa identificação cultural para outros lugares". A definição dada pela especialista rende coro nas próprias palavras do sanfoneiro.
Durante o filme, em momento contemplativo, com semblante quase a fugir da câmera, o filho de Garanhuns é enfático: "Na verdade eu acho que o baião é ainda pra mim, assim, todo o começo de tudo e eu acabo sempre tocado baião. Posso tocar o que tocar, mas o ritmo que mais eu gosto de tocar é baião". Coincidentemente, a declaração é a preferida de Catherine. Sobre o legado e a consistência do trabalho do sanfoneiro, a professora detalha: "Era capaz de entregar ao público uma interpretação musical genuína e fiel a seus sentimentos internos. É um ser apaixonante. O tipo de personagem que se alimenta e vive da música".
É duro ficar sem você
"Olha, nossa história é longa!", adverte Waldonys. Quando sabe que a conversa é sobre o "mestre", o músico festeja e se faz generoso nas palavras. O encontro com Dominguinhos lhe chegou quando ainda tinha 11 anos. Tudo aconteceu na cidade de Mossoró (RN).
"Na minha época de menino eu só queria saber de sanfona. Os outros garotos da escola não entendiam e eu era visto como uma espécie de ser do outro mundo. Quando conheci seu Domingos disse a mim mesmo: 'achei meu mundo, aqui é meu lugar'".
Dali em diante a relação ultrapassou a afinidade musical. Waldonys explica que era uma amizade entre pai e filho. Através do novo amigo, conheceu o papa Gonzagão. Um dos maiores acontecimentos na vida do cearense. Já mais velho e com a firmeza no domínio do acordeom, desbravou e dividiu palcos com Dominguinhos por inúmeros pontos do Brasil. "Foi um grande padrinho e nunca nos perdemos de vista".
Com mais de vinte anos de prolífica atividade musical, Waldonys explica que a oportunidade das futuras gerações de estudar, pesquisar e praticar a sonoridade de Dominguinhos é a herança inestimável deixada pelo mestre.
"Ele é fonte inesgotável. Seu legado está na música, na simplicidade, no homem generoso que foi". Ante de encerrar a conversa, o sanfoneiro relembra a última vez que soltou boas gargalhadas com o amigo. Após a internação, Waldonys visitou o padrinho por diversas vezes no hospital. Mesmo assim, o músico prefere lembra do show acontecido na cidade de Exu (PE).
"Dominguinhos já estava bem debilitado. Mesmo assim me disse que tinha ouvido meu show inteiro. Dias antes, tínhamos trabalhado juntos nos arranjos da música 'Eu te amo tanto', do Roberto Carlos. Quando ele me viu fez piada: 'o show foi bom e ainda bem que você não tocou 'Esse cara sou eu', né?".
Mais informações:
DVD "Dominguinhos" (Brasil, 2014, 86 minutos), de Joaquim Castro, Eduardo Nazarian e Mariana Aydar. Com patrocínio do projeto Natura Musical

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